terça-feira, 5 de junho de 2012

Intervalos

"Fio tinha conseguido sobreviver ao longo do anos porque decidira escolher, ela mesma, as suas verdades. Assim, certo dia, decidiu de livre e espontânea vontade abandonar definitivamente a semana e os seus dias, que articulavam a vida das pessoas. Desde então, o tempo passara a seguir o curso de seus sentimentos, daquilo que comia ou via. Seu calendário eram pequenos instantes, momentos fugazes passados ao redor do movimento das asas de uma rolinha, ou uma sessão de cinema; suas eras constituíam-se dos livros que lia, suas épocas eram formadas por um cigarro fumado, uma xícara de chá bebida, um morango saboreado. Suas civilizações nasciam e morriam no intervalo de duração da doçura de uma cereja explodindo na boca. Construíra seu pequeno mundo, onde aproveitava o intervalo de cada segundo.
Sentia falta daqueles dias trazidos por uma canção, um filme ou um livro, pequenos golpes de Estado aplicados de forma muito simpática em seu humor.
Naqueles tempos, quando ela era apenas ela mesma, e não aquilo que os outros achavam que ela fosse, dias e noites inteiras passavam sem ela e a deixavam no cais. Aprendera a lidar com isso. (...)
Aterrorizava-se diante da ideia de se tornar parecida com a imagem que os outros tinham dela."

(A Libélula dos Seus Oito Anos - Martin Page)

Trecho do livro que acabei de ler, começado umas quatro ou cinco vezes ele só aceitou falar-me quando me sentiu pronta a compartilhar do seu encantamento: um amontoado de nadas psicológicos que só quem consegue ver nexo no absurdo vai admirar, um intervalo minucioso brilhante entre uma vida graciosa sem aventuras e a excepcional arte que suga vidas que não têm nada. A jornada para um mergulho no Sena.

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